A “Timorização” da Pesquisa Histórica e Produção de Manuais Didáticos*

Apresentação online para o Conselho Latino Americano de Ciências Sociais (Clacso) e o Centro de Estudos Sociais (CES), Universidade  de Coimbra. Dia 27 de Junho de 2018.

Vou falar sobre A Timorização da História: Pesquisa histórica e produção de manuias didáticas. Esta apresentação, que tem por base bibliográfica A Timorização do Passado: Nação, imaginação e produção da história em Timor-Leste (2016), de Daniel de Lucca e Chega! Relatório da Comissão de Acolhimento, Verdade e Reconciliação de Timor-Leste (2005), baseia-se na reflexão a partir da experiência que tive enquanto membro da equipa que elaborou o currículo e os materiais de apoio da disciplinas de História do 1º e do 2º ciclo do ensino básico, em Timor-Leste.

Timor-Leste localiza-se na região do Sudeste Asiático, concretamente na metade leste da ilha de Timor, que restaurou a sua independência em 2002. Ao longo da sua história, enfrentou o legado do sistema educacional de dois regimes, ditatoriais: a ditadura do Estado Novo, durante o período colonial português, que terminou em 1975 e o período conflituoso de 24 anos, em que Timor esteve sob a ocupação do regime indonésio Nova Ordem. Depois disso, ainda houve um período transitório liderado pela Organização das Nações Unidas, desde 2000 até meados de 2002.

Apesar de ter algumas componentes fundamentais que construíram a identidade de Timor-Leste como herança cultural das tradições melanésia e austronésia, a diversidade linguística com mais de 15 idiomas, a influência latina durante quatro séculos e as fronteiras traçadas pela colonização portuguesa, outra componente importantíssima é a história coletiva que une os timorenses como Estado Nação entre dois países gigantes – a Indonésia e a Austrália. Neste contexto, é importante que os timorenses aprendam as lições do passado contemporâneo de Timor-Leste, que foi violento, para que não se repita agora, nem no futuro. Assim, essas experiências poderão ser lição de memória para a humanidade.

O processo da construção histórica na formação de uma identidade não é uma questão fácil. O sistema educacional do período português só copiava o ensino da metrópole, sendo maioritariamente desajustado da realidade e das necessidades dos timorenses, principalmente na disciplina de História, em que quase não se ensinava História de Timór. Claro, o currículo durante o período colonial só ensinava História de Portugal, e numa aula de Quarta Classe, com um mapa de Portugal na parede, todos os estudantes timorenses, nos sucos isolados, tinham de decorar os nomes dos rios e das linhas dos comboios que existiam em Portugal. Embora mais tarde alguns livros no fim da Quarta Classe descrevessem a vida nas colónias de África, continuava a afirmar-se a superioridade do estilo de vida dos portugueses. Entretanto, as culturas e as tradições dos timorenses não eram mencionadas na sala de aula, incluindo as nações vizinhas asiáticas.

A produção historiográfica sobre Timor-Leste, durante o período colonial, era dominada pela perspetiva portuguesa (eurocentrismo). A história sobre Timor só tinha importância quando estava relacionado com acontecimentos enquanto colónia da Holanda ou de Portugal, que alargavam os seus poderes, e o mapeamento das revoltas que apareciam contra as suas expansões. Significa que os timorenses só apareciam na história quando tinham contacto com os colonizadores. Os registos sobre a história de Timór são difíceis de encontrar porque a história convencional só dava importância aos documentos escritos, não utilizava uma abordagem etnográfica e antropológica, então ignorava a tradição da história oral que narrava, de forma riquíssima, a vida dos timorenses no passado. Por essa razão, se tivermos por base a produção de conhecimento segundo a perspetiva portuguesa durante o período colonial, ainda é difícil compreender o passado timorense no século XX.

Neste âmbito, é necessário uma discussão crítica sobre a historiografia sob a perspetiva da timorização. A ideia de timorização, de facto, começou depois da Revolução dos Cravos em 1974, quando se estabeleceu o Grupo Coordenador para a Reformulação do Ensino em Timor (GCRET), envolvendo metropolitanos e timorenses. Além de outros objetivos cruciais, um deles era discutir os programas de História e Geografia e a desadaptação dos manuais à realidade timorense. Em 1975, o programa de reformulação do ensino encontrou, em Timor-Leste, a oposição de alguns professores tradicionalistas e do Bispo Católico, que viu a mudança em Portugal como perigo de Timór ficar sob influência comunista, tendo reagido contra a reformulação do ensino, tal como contra todas as ações descolonização. Contudo, o que verdadeiramente impediu este processo foi, por um lado, o golpe da União Democrática Timorense (UDT), um partido de direita, contra o partido Frente Revolucionário de Timor-Leste Independente (Fretilin), que lutava pela independência total e, por outro, mais tarde, a invasão indonésia em Dezembro. Ambos os episódios aconteceram em 1975.

No período do governo de ocupação indonésia escreveu a história de Timor Leste para legitimar a política da integração. Um dos argumentos do regime indonésio para a anexação era que Timor tinha uma linha de conexão com o império Majapahit, nos séculos XIII-XV, o que anacronicamente colocava a República Indonésia moderna como herdeira da fronteira geográfica desse império. Assim, a integração de Timor-Leste como “território” não era mais do que retornar à Mãe Pátria. Em meados da década de 1960, no período da Guerra Fria, a Indonésia teve um regime anticomunista no poder. Esse regime foi fundado a partir do genocídio de cerca quinhentos mil a um milhão de pessoas na Indonésia, e também cerca duzentos mil timorenses, ou um terço a população, foram mortos durante a ocupação, antes de terminar com a política de terra queimada, em 1999. Para se manter no poder, o regime ditatorial indonésio agiu sempre de maneira hegemónica e coerciva, controlando a produção de conhecimento, removendo do currículo qualquer perspetiva sobre os direitos humanos, incluindo a história da luta dos timorenses pela independência.

Após a restauração da independência em 2002, a ideia timorização voltou a ganhar forma como discurso interpretativo, sendo redefinido com uma mudança significativa. No seu estudo, Daniel de Lucca apresenta a ideia de timorização no contexto da ‘descolonização’, particularmente com significado de ‘desportugalização’ e ‘desindonesianização’. Este conceito constitui-se como uma fundação teórica para debater o assunto pesquisa histórica, produção de manuais didáticos em Timor-Leste em geral e, especificamente para o nível do ensino básico.

Dessas conjunturas, a produção material didático para o ensino básico não é fácil. Um dos fatores, é que o número de timorenses que se graduaram na área de história não chega a uma dezena e, ainda não existe o curso de história na Universidade Nacional de Timor-Leste. Por esse motivo, são poucos os pesquisadores timorenses a trabalhar as fontes históricas, sendo a maioria das pesquisas elaborada por estrangeiros. As gerações timorenses que cresceram no período da ocupação indonésia ou do pós independência, nem todos dominam a língua portuguesa, inglesa, indonésia ou francesa, línguas geralmente utilizadas na escrita da história de Timor. De resto, também é difícil para o público timorense a acesso a livros e fontes.

No período ONU de 2000 até 2004, nas escolas, os professores timorenses ainda utilizavam os manuais de heranças indonésios ou, dependendo do material que cada professor conseguia ter acesso, de forma a pode ensinar. Em 2005, com a reintrodução da língua portuguesa, o governo de Timor-Leste, em cooperação com Portugal, optou por, gradualmente, reproduzir os materiais didáticos através da produção livro Estudo do Meio do nível do ensino básico. EM 2008, a cooperação com o Brasil produziu livros de história do nível secundário.

Esses materiais didáticos facilitaram o processo de aprendizagem nas escola, contudo, é sempre necessário de questionar com perguntas refletivas e críticas. Serão esses materiais didáticos ajustados à realidade duma sala de aula em Timor-Leste? Será que os conteúdos dos materiais da área da História de Timor-Leste que estão a ser ensinados já significa timorizar?

É importante a forma como o ensino da História é refletido nos materiais didáticos e, a interpretação que os timorenses fazem dela. A produção dos materiais didáticos é feita por estrangeiros; nem sempre representa as perspetivas dos timorenses. É importante a forma como a História é ensinada aos estudantes.

Os conteúdos dos materiais didáticos quase como repetição da produção historiográfica da perspetiva colonial, como a história de Timor-Leste começa mais ou menos depois da chegada dos portugueses; foca a relação comercial por causa do sândalo, fala das ‘campanhas da pacificação’ do governador português contra os reinos timorenses; rivalidade entre Holanda e Portugal, que dividiu a ilha de Timor em duas partes, não havendo espírito crítico em relação ao colonialismo português. Por exemplo, uma grande revolta contra colonialismo português que alguns historiadores consideravam como ‘primeiro’ ou ‘proto’ nacionalismo e o líder da revolta tornou-se herói no olhos dos timorenses, só simplificar que a revolta em causa foi apoiada pelos holandeses.

Além disso, a história contemporânea de Timor-Leste é brevíssimo. Começa pelo fim do período colonial português e a luta contra ocupação indonésia desde 1975 até 1999. Também é merecido criticar que os perfis chaves timorenses introduzidos no livro foram grandes homem e apenas homens. Não há mulheres.

Desses vários problemas, o Ministério da Educação fez uma reforma curricular em 2014, incluindo a unidade de ensino de História. Passou integrar o ensino da História no 5.º e .º anos, na disciplinas de Ciência Sociais e criou livros de referência. O objetivo da unidade de História é que:

No 5.º ano, os alunos possam compreender sobre o que é a História e evidências históricas, influências do período pré-colonial na sociedade atual, Timor antes do colonialismo português.

No 6.º, os alunos possam compreender sobre o tempo colonial, herança colonial no Timor-Leste de hoje em dia, a perspetiva histórica, o processo de autodeterminação e a luta contra a ocupação indonésia.

Da mesma forma, um currículo com o conteúdo da perspetiva da timorização, também precisa de pensar sobre como se está a ensinar a história no ensino básico. Daí produzimos também:

Os planos de lições com orientações pormenorizadas para os professores, para 100 minutos de aula, com exemplos criativos centrados no aluno.

Além de vários exercícios baseados na leitura, a unidade de história ensina através de mini teatro, análise de fotos históricos, diagramas e tabelas, canções e poesias, textos históricos, estudos em linhas de cronológica, apresentações de pessoas exteriores à escola, pesquisas de história oral, etc.

Também há formação continuada para os professores timorenses, realizada pelo Instituto de Formação de Docentes e Profissionais da Educação (Infordepe). Outra questão importante é ensinar em que língua? A questão da língua não pode impedir um estudante de obter conhecimento na escola. Sobretudo em Timor-Leste, nos dias de hoje, não é permitido uma repetição da prática dos dois regimes ditatoriais, como a do período português e do período indonésio, que impunham a superioridade de uma língua específica.

Ensinar os estudantes timorenses totalmente em língua portuguesa ainda é complicado. Porque a maioria das crianças, especialmente nas áreas rurais não têm acesso a contexto de imersão da língua. Tanto em ambiente lúdico, como em casa, não há condições para comunicar em língua portuguesa. A maioria dos professores ainda não dominam a língua portuguesa. Assim sendo, será melhor um processo de aprendizagem numa língua comum que os estudantes conheçam, facilitando o processo de aprendizagem. A utilização da língua tétum é fulcral, aumentado progressivamente a carga horária de língua portuguesa no 3º ciclo e, no secundário, já se utiliza o português como língua de instrução dominante.

Um currículo coerente deve dividir as atividades na sala de aula de forma racional, sendo necessárias atividades em língua tétum e em língua portuguesa . Além disso, a produção da língua referência para 1º e 2º ciclos mais adequado é bilíngue, tétum e português, o que torna Timor-Leste único.

Agora, sobre a produção de material didático que tem ligação a história Timor-Leste, o ideal é efetivamente, que os pedagogos ou peritos da educação desenvolvam baseando-se nos livros de história que foram escritos por historiadores. Mas isso não aconteceu em Timor-Leste, pois não há produção historiográfica desenvolvida por timorenses. Em consequência, também ainda não se estimula um espaço de discussão crítico sobre a produção historiográfica da perspetiva timorização.

Assim, a produção material do currículo de história de Timor-Leste é trabalho redobrado e um grande desafio. Ao mesmo tempo que se faz pesquisa sobre a veracidade dos factos, temos de selecionar os acontecimentos históricos, os perfis chaves e só então interpretar para utilizar na produção do material didático. É necessário também ser sensível a antecipar que os conteúdos não sejam demasiado controversos, especialmente os referentes à história do período da ocupação indonésia, uma vez que a maioria dos autores históricos ainda estão vivos.

Além da consulta de livros de história, também consultamos alguns peritos timorenses, autores históricos chave, organizações da resistência, sociedade civil e professores. A etapa seguinte foi a consulta com peritos pedagógicos e professores experientes no desenvolvimento de materiais didáticos.

Claro, não se trata de um processo imediato para elaborar história de Timor Leste no período contemporâneo. Aqui, as contribuições das organizações da resistência e das vítimas é muito útil, por exemplo para saber o número de pessoas mortas em alguns acontecimentos históricos durante ocupação indonésia.

Por outro lado, alguns museus que foram sendo construídos depois de Timor-Leste independente também contribuíram para a elaboração dos materiais didáticos. Por exemplo, os painéis da exibição do Memorial Dare, fundado em 2009, sobre a Segunda Guerra Mundial, quando a ilha de Timor se tornou palco de batalha entre as forças nipônicas e as forças aliadas, a Austrália e a Holanda. O Arquivo e Museu da Resistência Timorense foi fundado em 2005, reunindo documentação sobre a luta dos timorenses contra ocupação indonésia. O Museu Comarca de Balide, Comissão de Acolhimento Verdade e Reconciliação (CAVR) foi estabelecido em 2001, quando Timor-Leste estava sob a Organização das Nações Unidas, com o objetivo de investigar as violações dos direitos humanos cometidas neste país asiático entre abril de 1974 e outubro de 1999.

Relatório Chega! Elaborado pelo CAVR, com VI volumes, é o único escrito sobre a história da perspetiva das vítimas, apoiado pelo Estado, na Região Asia Pacífico. Este relatório descreve também a história das pessoas comuns, incluindo as mulheres das vítimas da guerra. Este relatório pode ser considerado como um produto da historiografia que coloca a perspetiva de timorização. Por isto, também se tornou uma referência importante para a produção de material didático, incluindo algumas recomendações sobre os valores de reconciliação e como criar paz em Timor-Leste, hoje em dia. Também algumas das recomendações do Relatório Chega estão relacionadas diretamente com a perspetiva timorização: que os sistemas educativos do governo e da igreja colaborem entre si para produzirem um currículo de direitos humanos e metodologias de ensino, a serem ministrados em todos os níveis do sistema educativo; que aproveitem o presente relatório e os materiais a ele associados para garantir que o curso se fundamenta na experiência vivida em Timor-Leste.

Da mesma forma, a outra fonte relevante que se utilizou como referência para a elaborações dos conteúdo da história no currículo, foi o resultado da pesquisa oral da Comissão de Pesquisa e Elaboração da História da Mulher Timor. Esta pesquisa foi uma iniciativa da Organização Popular da Mulher Timor, a primeira organização da mulher, no sentido de documentar a experiência das mulheres que viveram no período da ocupação indonésia. Conseguiram entrevistar quase 800 pessoas. No entanto, esta pesquisa de história oral contribuiu  para não esquecermos o papel da mulher durante o período da resistência. Então, alguns perfis femininos também foram introduzidos no material didático. Por exemplo, para o nivel 6.º, lê-se sobre uma mulher, no sentido de encorajar os estudantes a entrevistarem sobre as experiências de vida, de cada pessoa durante período ocupação e, apresentarem como trabalho final.

Outros exemplos de ‘timorização’ da história são:

Foco na sociedade de Timor antes da colonização, efeitos do colonialismo português na construção da cultura de Timor-Leste, as revoltas de reinos timorenses contra o colonialismo; incluir perspetivas nacionalistas timorenses.

Ensino de canções e poesias; diversidade de línguas; razão  para a escolha das duas línguas oficiais; identidade maubere; luta pela emancipação da mulher.

Luta contra o colonialismo e a ocupação indonésia; figuras individuais determinantes, etc.

Ainda assim, as dificuldades enfrentadas não foram só a técnica no processo de pesquisa e a escrita de materiais didáticos. Também é necessário escrever numa linguagem simples, nem sempre fácil porque a língua tétum e a língua portuguesa não são línguas maternas da maior parte dos timorenses; quem escreve os livros nem sempre conhece a realidade do Ensino Básico e tem que consultar os professores.

Outra grande dificuldade vem do facto de que alguns assuntos sobre a perspetiva da timorização ainda não estão abertos a discussão crítica. Não há movimentos que discutam a questão descolonização, e tantas vezes encontramos timorenses ainda com um pensamento conservador, referindo o sistema educacional no período colonial português e período colonial indonésia como exemplar. Qualquer programa de cooperação com países estrangeiros, deve ser adaptada às realidade timorenses. Também se deve cria um sistema sustentável para os materiais didáticos. Por exemplo, a impressão ser feita em Timor-Leste, não só criar dependência aos editores que como dono de copyright e os livros sempre muito caro.

Os conteúdos da história, por causa da sua complexidade e limitação de templo de aulas, muitos assuntos não ensinados precisam de ser introduzidos no 3.º ciclo, no secundário e na universidade. No futuro, Timor Leste precisa de uma instituição centrada na pesquisa da História, com historiadores timorenses que debatam e questionem o avanço da historiografia e do ensino da história nas escolas de Timor-Leste.


Pintura: Alfe RM

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