Vanessa Lessio Diniz**
Universidade Estadual de Campinas – Brasil
Rogério Sávio
Ministério da Educação – Timor-Leste
Prólogo
Um fantasma (matebian) ronda Timor-Leste – é o fantasma da colonialidade.[1] Não só em Timor-Leste, mas em muitas nações que passaram por processos de colonização e conflitos territoriais, ainda hoje se veem enfrentando aspectos de subalternização frente aos seus antigos antagonistas. Acredita-se que a construção do conhecimento crítico sobre a história e a geografia de um país, pode ser encarrada como uma forma de luta, objetivando a emancipação dos povos e nações. Na esfera educacional, a implementação de uma disciplina escolar necessita ser entendida como uma construção social impregnada de ideologias e visões de mundo dos sujeitos envolvidos. Em diferentes contextos mundiais, nos momentos de disputas, instabilidades e ou mudanças políticas, entram em vigor reformas educacionais que agem diretamente nas disciplinas de História e de Geografia. Essas são as primeiras disciplinas a sofrerem alterações, seja no nível de ensino que estarão presentes (básico, secundário, etc), em sua carga horária ou nos conteúdos curriculares selecionados para serem ensinados. Dessa forma, cabe refletirmos criticamente sobre o papel atribuído as disciplinas nas reformas e reestruturações curriculares, pois muitas vezes tais mudanças impossibilitam uma intervenção ativa e válida dessas disciplinas nos processos de transformação social.
História e Geografia de Timor-Leste: (re)conhecer o passado dessas disciplinas para timorizar o presente
Iniciamos esse manifesto apresentando nossa concepção sobre currículo, que tem como base teorias pós-críticas e pós-estruturalistas, na qual concebemos esse objeto de estudo do campo educacional como “um processo de produção de sentidos, sempre híbridos, que nunca cessa e que, portanto, é incapaz de produzir identidades. O que ele produz é diferença pura, adiamento do sentido e, portanto, necessidade incessante de significação” (Lopes e Macedo, 2011, p. 227), isto é, não cabe existir no currículo um sentido previamente fixado, passível de identificar as coisas e os sujeitos desse mundo.
Assim, ao discutirmos sobre a implementação de um currículo, devemos compreender que este se articula às diferentes escalas de um sistema educacional, que vão desde aspectos políticos mais amplos até as questões relativas aos conhecimentos e aos conteúdos disciplinares que serão ou não valorizados. O contexto educacional de um país recebe múltiplas influências na construção dos seus currículos, e essas influências refletem o jogo de forças entre diferentes sujeitos sociais, como, por exemplo, as negociações entre o Governo e a sociedade, e também as imposições de órgãos externos financiadores de políticas para a educação,[2] entre eles, podemos citar o Banco Mundial.[3] Ou seja, o currículo é uma construção social, podendo ser entendido como uma arena de disputas no qual encontramos todos os tipos de mudanças, interesses e relações de dominação (Goodson, 1995).
Tendo como intuito legitimar visões específicas de mundo (Silva, 2015a), as propostas curriculares, ancoradas nas disciplinas escolares, deixam sempre à mostra diferentes dimensões do Estado, como a econômica, a política e a cultural, evidenciando também os interesses substanciais de uma hegemonia política presente em um determinado período histórico, sendo esta hegemonia sempre contingencial e provisória (Laclau, 2011) e por isso, estando em constante processo de transformação e ressignificação.
Diante disso, ao apresentarmos nossa concepção sobre currículo, destacamos que (re)conhecer o histórico das disciplinas escolares de um país pode proporcionar uma nova visão para os objetivos de ensino e de aprendizagem, no qual passamos a desnaturalizar os conteúdos e os conhecimentos escolares, uma vez que, ao falar de uma história das disciplinas significa admitirmos que essas são construções sócio-históricas, contextualizadas em tempos e espaços determinados e, envoltas de interesses e de intencionalidades vinculadas aos seus contextos de produções.
A partir dos estudos de Chervel (1990), entendemos a disciplina escolar como um conjunto de conhecimentos, elaborado por especialistas, identificado e dotado de organização própria para um determinado estudo. Esse conhecimento, ao vincular-se à escola, estabelece novas relações de saber a partir das atividades de seus agentes principais (professores e alunos), sendo as disciplinas um dos principais “modos de transmissão cultural que se dirigem aos alunos” (Ibidem, p. 186). Nesse sentido, acreditamos ser fundamental conhecer a construção e a constituição das disciplinas no âmbito das reformas ou reestruturações curriculares, para assim, compreendermos se seu aprendizado edifica ou não um pensamento crítico nos educandos, possibilitando ações emancipatórias desses sujeitos frente as questões que vivenciam em seu meio social.
Em Timor-Leste, refletir sobre a construção das disciplinas de Histórica e de Geografia não é uma tarefa fácil. Uma vez que, o sistema educacional desse país passou por períodos de grande complexidade, derivando de intervenções externas às verdadeiras demandas educacionais locais. Silva (2015) discorre que como um país pós-colonial, o sistema de educação timorense ainda hoje é afetado pelas heranças dos diferentes sistemas de educação coloniais, podendo ser caracterizado por uma triangulação entre “a herança colonial, a política de formação do Estado e a realidade da globalização” (p. 122).
Trazendo um breve histórico dessa herança colonial, podemos dizer que o sistema educacional no período português, ou seja, no chamado Timor Português, tratava-se apenas de uma cópia do ensino da metrópole, “sendo implementado um currículo completamente ocidental, sendo uma educação de elite e sem acesso à educação pública em massa” (Fonseca, 2010, p.17). Tratando-se de um currículo descontextualizado com a realidade e as necessidades dos timorenses, as escolas durante o período colonial só ensinavam a história e a geografia de Portugal, fato evidenciado em um relato baseado em trabalhos da pesquisadora Helen Hill:[4] “e numa aula de Quarta Classe, com um mapa de Portugal na parede, todos os estudantes timorenses, nos sucos isolados, tinham de decorar os nomes dos rios e das linhas dos comboios que existiam em Portugal. Embora mais tarde alguns livros no fim da quarta classe descrevessem a vida nas colónias de África, continuava a afirmar-se a superioridade do estilo de vida dos portugueses” (Transcrito de Ma’averu, 2018.).
No entanto, questões temporais e espaciais vivenciadas pelos timorenses não eram mencionadas na sala de aula, a título de exemplo, não se encontra qualquer menção de ensinamentos sobre a riqueza da variedade linguística e cultural do povo maubere ou sobre as emaranhadas relações históricas e geopolíticas com as nações asiáticas vizinhas. A produção historiográfica e geográfica de Timor-Leste, durante o período colonial, era dominada pela perspetiva portuguesa (eurocêntrica). Nesse período, a história sobre a ilha de Timor só tinha importância quando estava relacionada com acontecimentos enquanto colônia da Holanda[5] ou de Portugal, objetivando o alargamento do poder das metrópoles e o mapeamento das revoltas que apareciam contra as suas expansões, ou seja, os timorenses só apareciam na história quando tinham contato com seus colonizadores.
Sousa (2013) em análise sobre a representação dos timorenses nos manuais portugueses de Geografia do Estado Novo (1933-1974), nos releva que em relação à representação de Timor e dos timorenses nos manuais escolares do Estado Novo observa-se que a sua presença e descrição evoluem no tempo, passando de uma descrição passageira e simplista, baseada em pressupostos raciais, para uma abordagem emotiva e afetiva, conotada com lealdade e amor a Portugal, (enquanto oculta, por exemplo, as revoltas de Manufahi em 1912 e Viqueque em 1959). A representação de “Timor português” é, sobretudo, a prova distante (espacial) da expansão colonizadora portuguesa, e estes atos de “amor” e “lealdade” dos seus membros reforçam a justificação da missão civilizadora, a posse e integração colonial, ultramarina, “pluri”, de espaços e gentes (p. 31).
Com isso, nota-se o silenciamento de contextos importantes de resistências frente a colonização portuguesa e a presença de uma narrativa romantizada sobre a relação entre o colonizador e o colonizado, expressando assim, o perigo de uma história e uma geografia apresentada unicamente pela visão dos colonizadores, no qual impossibilitava a construção de diferentes visões sobre as complexidades vivenciadas nos fatos históricos e sobre a formação socioterritorial desse país. Buscando a manutenção do status quo do sistema colonial, sabemos que desde a antiguidade, a apropriação do saber histórico e do saber geográfico sobre um determinado espaço, é concebida como um saber estratégico de diferentes grupos (políticos e econômicos), sendo utilizado como uma das formas para a manutenção dos mesmos no poder (Girotto, 2015), assim, nunca foi de interesse da colônia compartilhar tais saberes.
Adiante, já no período da ocupação Indonésia, é essa nação que passa a escrever sobre a história e a geografia de Timor-Leste. De acordo com Fonseca (2010), durante este período ocorreu uma descaracterização paulatina da cultura luso-timorense, visto que, com a proibição do ensino da língua portuguesa em todos os níveis de ensino, o malaio indonésio passou a ocupar este lugar e, com isso passou a ser ensinado “toda a história e a cultura indonésia, sendo Timor-Leste (Timor-Timur) visto sob o ponto de vista do ocupante como sua vigésima sétima província” (p. 18).
Esse regime de ocupação foi fundado a partir de um genocídio em Timor-Leste, onde cerca de duzentos mil timorenses foram mortos ou “um quarto da população total” (Cunha, 2012, p. 71), além de uma forte repressão generalizada por todos os lados desse território. Sempre buscando legitimar sua política de integração, com a intenção de promover uma “indonesianização” no território recém invadido, a Indonésia proibiu o uso da língua portuguesa em toda esfera pública do território, passando a investir na construção de escolas e na ampliação do sistema educacional.
Segundo Ma’averu (2018), um dos argumentos do regime indonésio para efetivar a anexação territorial, era que a ilha de Timor tinha uma linha de conexão com o Império Majapahit,[6] o que anacronicamente colocava a República Indonésia moderna como herdeira da fronteira geográfica desse império. Assim, a integração de Timor-Leste como “território indonésio” foi discursivamente anunciada pelo seu invasor como um “retorno à Mãe Pátria”. Diante disso, segundo o mesmo autor, o regime ditatorial indonésio para se manter no poder, agiu sempre de maneira hegemônica e coerciva, controlando a produção de conhecimento, removendo do currículo qualquer perspetiva sobre os direitos humanos e excluindo a história da luta dos timorenses pela sua independência. Vale ressaltar sobre esse período do sistema educacional timorense, que antes de se retirar de Timor-Leste, o exército indonésio, acompanhado por milícias timorenses pró-Indonésia, arrasou com 75% da infraestrutura do país, “assim como 90% das escolas e seus livros foram destruídos e, também 80% dos professores e administradores escolares, que eram de origem indonésia, deixaram o país” (Scherl, 2007, p. 257).
Avançando para o contexto da restauração da independência de Timor-Leste, entre os anos de 1999 a 2002 – momento em que o território timorense ficou sob a Administração Transitória das Nações Unidas (UNTAET) – segundo Cardoso (2012), é possível dizer que nesse período, apesar do apoio internacional, a realidade do sistema educacional timorense ainda era precária no que diz respeito a infraestruturas e equipamentos (edifícios, bibliotecas, recursos humanos, materiais escolares), sendo que nas escolas timorenses os professores ainda utilizavam os manuais de herança indonésia ou dependendiam de outros materiais que conseguiam ter acesso para ensinar.
Após ser reconhecido como Estado soberano em 2002, no âmbito das políticas de formação desse Estado, temos a oficialização da língua portuguesa e a entrada de Timor-Leste na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Com isso, o governo timorense em parceria com a Cooperação Portuguesa, iniciou a partir de 2005 a reestruturação do seu sistema educacional, e gradualmente foi elaborando e implementando as reformas curriculares em todos os níveis de ensino, assim como a distribuição de novos materiais didáticos.
A reforma curricular, em Timor-Leste, iniciou-se no ano de 2010, inserida numa reforma mais ampla do sistema educativo, baseada na identidade, na cultura, na moral e na religião do país. A mudança do sistema educativo foi lançada pelo governo timorense, através do Ministério da Educação, e teve reflexos significativos ao nível da organização curricular, dos programas disciplinares, dos calendários escolares, do início do ano letivo, da avaliação curricular e da ação dos professores nas escolas básicas e secundárias. As principais dificuldades encontradas na implementação da reforma educativa [e curricular] em curso surgem associadas às mudanças de áreas e/ou disciplinas, em particular na disciplina de Ciências Exatas e na disciplina de História e Geografia (Cardoso, 2012, p.15).
Sobre esse período mais recente, frente a reforma curricular, é importante problematizarmos a forma como a História e a Geografia estão presentes nos documentos curriculares, e consequentemente nos materiais didáticos desse país. No âmbito da atual Reestruturação Curricular de Timor-Leste, consideramos os Manuais dos Alunos[7] e Guias dos Professores como parte da materialidade discursiva do atual currículo e, com isso, temos a necessidade de estarmos atentos ao que seus discursos refletem, pois a produção desses materiais é feita por estrangeiros e nem sempre representam as perspetivas e as epitemes timorenses, isto é, ainda não contemplam a timorização[8] dessas disciplinas.
Cardoso (2012) discute que, no atual processo de reforma curricular, ainda persiste o problema das organizações responsáveis pela produção desses materiais não considerarem as disparidades econômicas e sociais entre as diferentes regiões do país, “na verdade a adoção de uma certa concessão de sociedade e de educação, destinada a aplicar a todos os países, nem sempre se adequa a todos os contextos, tal como acontece com algumas regiões de Timor-Leste” (Ibidem, p.42). Diante disso, evidenciando uma certa descontextualização dos conhecimentos e conteúdos curriculares com a realidade timorense, na atual disciplina de História também encontramos os conteúdos dos materiais didáticos quase como repetição da produção historiográfica da perspetiva colonial, como: A História de TL começa mais ou menos depois da chegada dos portugueses: foca a relação comercial por causa do sândalo, fala das ‘campanhas de pacificação’ do governador português contra os reinos timorenses; rivalidade entre Holanda e Portugal, que dividiu a ilha de Timor em duas partes, não havendo espírito crítico em relação ao colonialismo português. Por exemplo, o termo ‘campanhas de pacificação’ ainda é válido? Ou será necessário desenvolver outro termo, segundo a perspetiva dos timorenses? (Ma’averu, 2018).
Em geografia, por uma vez, encontramos ainda aspectos de uma Geografia escolar marcada pela linguagem descritiva tipicamente “enciclopédica”, que se mostra na forma de enunciar e organizar seus conteúdos, descrevendo as paisagens e apenas apresentando a realidade de forma estática, ou seja, trazendo um imaginário que naturaliza as formas encontradas no território, não apresentado sua formação espacial criticamente.
Santos (2000), crítica essa concepção geográfica, dizendo que: “a geografia considerada como disciplina das localizações, posição aceita durante largo tempo, mostra-se todavia limitante do rol de relações que se dão entre o homem e o meio e, por essa razão, revela-se insuficiente” (p.103). Ainda sobre essa discussão, Haesbaert e Porto-Gonçalves (2006) discorrem que, fomos habituados a pensar e sentir o mundo como se fosse natural a existência dessa geografia que conhecemos, ou seja, essa forma de organização do espaço geográfico em Estados, com suas fronteiras territoriais nítidas e reconhecidas, assim como suas relações bem definidas. Porém, essa configuração está longe de ser um produto natural, “ao contrário, trata-se de uma invenção histórica europeia que, depois, se generalizou para o mundo como parte do colonialismo e do imperialismo” (p.13).
Não podemos deixar de problematizar que vivenciamos cotidianamente o fenômeno da globalização. Este não está presente apenas nos domínios econômicos, políticos e culturais, mas também no domínio educacional – vivemos na interação com diferentes espaços-tempos que alteram os modos como concebemos o mundo e, com isso, como concebemos o ensinar e o aprender sobre o mundo – indicando grande diversidade no campo das ideias e das demandas para atender às necessidades educacionais de cada lugar. Com toda essa problematica apresentada até esse ponto de nosso manifesto. Questionamos: Como emancipar os currículos de Timor-Leste? Como timorizar as disciplinas de História e Geografia?
Sabemos que a produção de um currículo e de materiais didáticos não é uma tarefa fácil. Em Timor-Leste, temos uma questão significativa que dificulta ainda mais a construção da timorização das disciplinas postas em questão nesse manifesto, é que o número de timorenses que se graduaram na área de história e de geografia não chega a duas dezenas e, ainda não existe cursos de Ensino Superior em História e Geografia na Universidade Nacional Timor Lorosa’e. Por esse motivo, são poucos os pesquisadores timorenses a trabalhar as fontes históricas e geográficas, sendo a maioria das pesquisas elaborada por estrangeiros. As gerações timorenses que cresceram no período da ocupação Indonésia ou do pós independência, nem todos dominam a língua portuguesa, inglêsa, ou francesa, línguas geralmente utilizadas na escrita da história e da geografia de Timor. De resto, também é difícil para o público timorense o acesso a livros e fontes.
Focalizando nos profissionais que trabalham diariamente essas disciplinas nas escolas de Timor-Leste, partindo da concepção de que os professores são profissionais essenciais nos processos de mudança das sociedades, se esses forem deixados à margem, as decisões pedagógicas e curriculares alheias, por mais interessantes que possam parecer, não se efetivam, não geram efeitos sobre a sociedade. Por isso é preciso investir na formação e no desenvolvimento profissional dos professores (PONTUSCHKA et al., 2009). A formação de professores de História e Geografia requer a abordagem de questões teórico-metodológicas quanto às finalidades e princípios que norteiam os cursos específicos dessa formação, as posturas assumidas por estes profissionais no cotidiano da atividade docente, bem como a construção de conhecimentos que contribuam para o processo de ensino-aprendizagem.
Sobre a história das disciplinas de História e de Geografia de Timor-Leste, podemos dizer que nos deparamos com longos períodos dos sistemas educacionais voltados para atender a manutenção da colonização e da ocupação territorial, e posteriormente com um recente período de reestruturação do sistema educativo timorense. Porém, ainda hoje encontramos materiais didáticos apresentando conhecimentos descontextualizados, conteúdos curriculares estáticos e descritivos e, metodologias de aprendizagem baseadas na memorização de conteúdos e conceitos. Ou seja, o que se ensina nas escolas parece não estar vinculada à vida dos sujeitos, apresentando-se somente como uma lista de lugares, personagens, nomes, datas e formas que precisam ser decorados e devolvidos para a realização de exames semestrais ou anuais. Assim, para repensar papel ativo das disciplinas de História e Geografia, há a necessidade de um diálogo permanente com a próprio tempo e espaço timorenses, para que o aluno amplie sua visão de mundo, conheça e reconheça seu papel numa sociedade hoje tecnológica-científica-informacional e em uma economia e cultura globalizada. O trabalho pedagógico nas disciplinas de História e Geografia precisa permitir ao aluno assumir posições diante dos problemas enfrentados na família, no trabalho, na escola e nas instituições de que participa ou poderá a vir participar, aumentando seu nível de consciência sobre as responsabilidades, os direitos sociais, a fim de efetivamente ser agente de mudanças desejáveis para a sociedade.
Contudo, refletir sobre o ensino de História e de Geografia na atualidade implica pensar num processo amplo e complexo, sobretudo pelas rápidas transformações que ocorrem no atual estágio da globalização. Sabemos que para enfrentar esses desafios se faz necessária uma formação de professores consistente e que propicie ao futuro professor de História e de Geografia um conjunto de saberes que lhes possibilite manusear os temas disciplinares na Educação Básica e no Ensino Secundário em sintonia com as transformações do mundo contemporâneo.
* Publicado em Irta Sequeira Barris de Araújo (orgs.). Leituras atuais sobre língua, ensino e didática em Timor-Leste. Díli. UPDC.PPGP. 2019.
** A vivência da geógrafa brasileira Vanessa Diniz em Díli, iniciou-se durante os anos de 2014-2015, nos quais atuou no Programa de Qualificação de Docente e Ensino de Língua Portuguesa (PQLP/CAPES) – cooperação bilateral entre Brasil e Timor-Leste. A partir desse período no país, tomou conhecimento de alguns do caminhos que perpassam sua restauração pós-conflito, como a reestruturação do seu sistema educacional, em especial os desafios referentes a disciplina de Geografia desse país. Nesse contexto, desde 2016 vem desenvolvendo a pesquisa de doutoramento “Currículo e sentidos de Geografia em Timor-Leste: disputas na significação da identidade nacional timorense”. Em 2017, durante o trabalho de campo para coleta de dados da pesquisa, através da realização de entrevista e procura documental, conheceu o historiador timorense Rogério Sávio Ma’averu que vem pesquisando e discutindo a reconstrução da disciplina de História em seu país. Assim, em diálogos, percebeu-se as similaridades dos problemas e desafios que as disciplinas de História e de Geografia enfrentam hoje em Timor-Leste e a urgência de se (re)pensar a formação de seus.
Nota de rodapé
[1] Mesmo com o fim do colonialismo, alguns padrões de organização, de comportamentos e alguns conceitos e categorias analíticas ainda hoje se imperam como naturais, isto é, tornaram-se normas universais e se transformaram em modelo de civilização para todo o planeta. Entretanto, esse padrão parte de perspetivas hegemônicas da modernidade ocidental, que podemos chamar de colonialidade (Mignolo, 2003; Maldonado-Torres, 2007). Segundo Porto-Gonçalves (2005), essa colonialidade nos revela que há um legado epistemológico do eurocentrismo que nos impede de compreender o mundo a partir do próprio mundo em que vivemos e das epistemes que lhes são próprias.
[2] Além dos exemplos citados, buscamos não trazer uma perspectiva estadocêntrica para nossa leitura sobre o currículo, ou seja, entendemos que os currículos são produzidos pelos Estados a partir de negociações de diferentes esferas de poder e que esses são ressignificados por diferentes sujeitos nos diferentes contextos escolares.
[3] Segundo nota do site do Ministério da Educação de Timor-Leste do dia 07 de setembro de 2012, “Em Timor Leste, o Banco Mundial tem apoiado a área da Educação no que diz respeito a treinamentos, financiamento de programas e apoio técnico desde o ano de 2000. O apoio do Banco Mundial, nos últimos anos, tem sido especialmente para a área da expansão do acesso à Educação Básica e Secundária Geral através das facilidades nas escolas, matérias de aprendizagem, incluindo, reforçar a qualidade de ensino através de treinamento de professores e no desenvolvimento de Currículos” (RDTL, 2012).
[4] Helen Hill é conselheira na Universidade Nacional Timor Lorosa’e e membro honorária da Victoria University. Escreveu extensivamente sobre Timor-Leste desde os anos 1970, começando com The Timor Story em 1976. Desde a independência de Timor-Leste, a pesquisadora tem sido uma observadora atenta ao desenvolvimento desse país como um Estado independente e democrático. Informação disponível em:
<https://events.unimelb.edu.au/presenters/5750-dr-helen-m-hill> (Acesso em 28 de julho de 2018).
[5] “Em 1651, os holandeses conquistaram Kupang, no extremo oeste da ilha de Timor, e começam a penetrar até a metade de seu território. Em 1859, um tratado firmado entre Portugal e Holanda fixa a fronteira entre o Timor Português (actual Timor-Leste) e o Timor Holandês (Timor Ocidental). Em 1945 a Indonésia obteve sua independência, passando o Timor Ocidental a fazer parte de seu território” democrático (Informação disponível em: <http://timor-leste.gov.tl/?p=29>. Acesso em 03 de agosto de 2018).
[6] O Império de Majapahit foi um reino indianizado baseado na parte oriental da ilha de Java, que existiu entre 1293 e 1527. Seu maior governante foi Hayam Wuruk, cujo reinado durou de 1350 a 1389, marcando o auge do império quando dominou os reinos do sudoeste marítimo da Ásia (atualmente os territórios da Indonésia, Malásia e Filipinas). Esse foi o último dos reinos hindus do Arquipélago Malaio e é considerado um dos maiores estados na história da Indonésia, no qual sua influência se estendia a estados em Sumatra, na península da Malásia, Bornéu e Indonésia oriental, embora a sua extensão seja um tema controverso (MARTINHO, 1943; PRAPANTJA, 1962).
[7] “Os livros didáticos são vistos na literatura como importantes elementos da cultura escolar e, por isso, nos servem como ricas fontes de estudos e pesquisa na área de currículo, pois os conteúdos dos livros didáticos podem ser compreendidos como parte daquilo que está autorizado, no plano das práticas discursivas, a pertencer ao discurso do conhecimento escolar em Geografia” (Vilela, 2014, p. 56).
[8] Com base em Costa (2016), podemos dizer que a ideia da timorização começou depois da Revolução dos Cravos em 1974, quando se estabeleceu o Grupo Coordenador para a Reformulação do Ensino em Timor (GCRET), tendo como um dos seus objetivos, discutir os programas de História e Geografia e a descontextualização dos manuais dessas disciplinas frente à realidade timorense. Em 1975, a proposta do GCRET para a reformulação do ensino passou a encontrar em Timor-Leste a oposição de alguns professores tradicionalistas e parte dos membros da Igreja Católica, pois esses vima tais mudanças educacionais como uma perigosa influência comunista, reagindo assim, contra essa formulação e contra todas as ações de descolonização do ensino timorense. A invasão Indonésia que ocorreu em dezembro desse mesmo ano impediu por completo qualquer efetivação da proposta de timorização. Porém com a restauração da independência em 2002, a ideia da timorização voltou a ganhar forma como discurso interpretativo, sendo redefinido com uma mudança significativa para as práticas sociais timorenses.
Referências
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Pintura: Alfe RM

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