Da Resistência Cultural à Resistência Epistêmica

A presente reflexão é parte de um estudo maior realizado pelo Centro de Pesquisa e Estudo Timor-Leste – Brasil. Um dos intuitos dos pesquisadores é examinar a intensificação de uma nova resistência dos Timores, incompreensível para a maior parte desse povo pelo fato de ser util, ainda que poderosa, velada, pois é parcialmente percebida, pouco elaborada e ainda não verbalizada, abstrata pois, a dominação a que se tenta resistir se dilui nas estruturas sociais “modernas” tais como a ciência, a moda, a política, a espiritualidade etc…, e neurológica pelo fato do ambiente colonial secular ter causado uma falha cognitiva na compreensão dos fenômenos de dominação tanto pelos seus autores imperiais como pelos oprimidos no processo.

Esses fenômenos de dominação e universalização do futuro são reproduzidos inconscientemente por parte dos sujeitos dominados-colonizados, que vão, por exemplo, comemorar agora, em 2015, os 500 anos de Interação de Duas Civilizações – Timorense e Portuguesa, dividindo opiniões e acirrando discussões e críticas aos nebulosa, em guetos da Universidade Nacional Timor Lorosa’e (UNTL) e espaços abertos aos movimentos sociais estudantis e da sociedade.

De objeto ex situ de teses ao protagonismo de Lulik

Superada a resistência cultural sob a colonização portuguesa (de 1515 a 1975), da invasão indonésia, apoiada pelos EUA, Austrália, França, etc… (de 1975 a 1999), e o governo transitório malae das Nações Unidas (de 1999 a 2002), os Timores ligados ao conhecimento acadêmico e movimentos estudantis iniciam uma resistência epistêmica a dita universalidade do saber, até aqui centrado em estruturas coloniais seculares em que a participação dos intelectuais indigenas-mestiços tem ficado renegada à invisibilidade e a exclusão da memória humana.

Podemos citar os livros escritos pelo sul americano Wama Poma, datadas do século XVI, que teve suas obras resgatados no final do século XX, passando pelo filósofo e antropólogo argentino-maldito, Rodolfo Kusch e suas obras do início do século XX, até a Pedagogia Maubere do professor Antero Benedito da Silca, que resgata em sua tese a educação do período da resistência, que utilizava elementos tradicionais dialogando com política, sociedade e espiritualidade, em busca de superar o obscurantismo. Mesmo sendo nativo e professor da UNTL, sua obra não entra como referência bibliográfica na Faculdade de Educação da Instituição em que trabalha.

Desta forma, a sociedade dos Timores em seus diversos aspetos antropológico espiritual, político, linguístico – é intensamente visitada por pesquisadores das mais variadas áreas científicas e regiões do planeta que, na maior parte das vezes, publicam relevantes histórias e registam descobertas interessantes. Essas pesquisas, que acontecem por todo país, permitem laurear esses pesquisadores internacionais com prêmios e prestígio junto aos seus pares e instituições acadêmicas.

Pode-se afirmar que o Timor-Leste é um grande laboratório ex situ (experiências nos lugares de origem dos fenômenos observados) para toda sorte de investigadores, pois lhes possibilita mergulharem em seu universo e saírem de lá carregando algum “souvenir” que irá impressionar todos em seu redor, tal como uma aventura por lugares exôticos não muito ocidentalizados, em que mais se difere de uma matriz eurocêntrica, mais interessante se torna aos olhos dos ocidentais ou ocidentalizados.

E venham depressa, pois a ocidentalização, com toda sua oferta de sedução aliada às promessas que a sociedade de consumo propaga, chega nesse recanto a uma velocidade alucinante, acolhida pelas agências internacionais instaladas no território tais como ONU, Banco Mundial, algumas cooperações e ONGs, embaixadas etc. Dessa forma, a veloz transformação do país cria a necessidade de pequenos recortes temporais para a pergunta – “que Timor conheceu?” – o “Timor-Português”, o “Timor-Timur” (do tempo indonésio), “Timor da ONU” (governo de transição), ou o “Timor-Leste” (com Timores na governança)? E mesmo após 2002, Timor-Leste tem tido mudanças significativas em períodos curtos de tempo.

Porém, começa agora a questionar-se essa festa da pesquisa, na qual os timores pouco participam como investigadores. A resistência a esse modelo centralizante surge a par de reindivicação de outros papéis para além do tradicional papel de objeto de estudo. Os timores querem, portanto, ser atores inter pares nesse processo dito “científico.”

Em Agosto de 2014, na Primeira Conferência Internacional da UNTL, um pensamento foi recorrentemente verbalizado, principalmente pelo Professor Vicente Paulino, um dos organizadores do evento. O professor proclamava “Pesquisadores internacionais, façam pesquisa junto com os pesquisadores timorenses: nós também queremos escrever sobre nós.”

O antropólogo brasileiro Viveiro de Castro, um dos grandes nomes da antropologia mundial, acostumado a trabalhar durante décadas com povos tradicionais brasileiros, afirma que os pesquisadores que embarcam nessa expedição de conhecimento e estudo de outras sociedades podem no máximo reindivicar uma co-autoria de suas produções intelectuais. E, conforme defende, uma viagem “Inter mundos”, em que a interculturalidade deve ser a principal razão da compreensão e da troca de experiências.

Essa co-autoria deve-se ao fato de essas sociedades doarem toda a sua cosmovisão de bandeja, pronta a ser usada em nome da boa ciência. A mesma boa ciência que diz ser direcionada para a busca de benefício social, tentando romper as couraças dos muros das Universidades e de Institutos de Pesquisa para participar mais ativamente na vida quotidiana e da melhoria da vida em todas as suas manifestações.

Entretanto, essa mesma ciência é desafiada pelo interesse das patentes e financiada pelas grandes empresas, cujo fim é, por natureza, a prossecução do lucro. Quando o Brasil ameaçou interpor processo junto a Organização Mundial do Comércio (OMC), requerendo a “quebra de patente” dos caríssimos remédios para combater o HIV de modo a fazer uma política de distribuição gratuita desses medicamentos, os governos dos EUA e de alguns países europeus posicionaram-se totalmente contra, alegando que as empresas investiram muito e que não poderiam abrir mão dos seus lucros, mesmo que fosse para salvar vidas humanas.

Os interesses das empresas, defendidos por seus governos na ordem política internacional, são os das mesmas empresas que utilizam o conhecimento tradicional sobre a biodiversidade para produção de medicamentos. Segundo o Jardim Botânico de Londres (2010), 80% dos medicamentos produzidos hoje advêm da biodiversidade e são associados aos conhecimento tradicionais dos povos que ali pertencem. E esses povos nada ou muito recebem por essa contribuição.

Diante de um pensamento “universal” da economia, da política e do que é entendido por “civilização”de bases unicamente eurocêntricas, porém com fetiche pelo exótico, mas, paradoxalmente, hierarquizando o conhecimento e os sujeitos no sentido de que quanto mais similar à imagem de um europeu (branco, macho, hetero), maior graduação terá na régua do desenvolvimento e do civilizado.

O incômodo de ser parte-objeto-primitivo desse processo binário em curso, que transforma os sistemas pluri-versais em hierarquias lineares, baseados na dicotomia de polos: civilizado-selvagem, religioso-animista, ciência-misticismo, cultura escrita-cultural oral, é que os intelectuais e estudantes timorenses começam a questionar o protagonismo Malae nas ciências e na epistemologia-conhecimento em terras de Timor-Leste.

Com a intenção de resistir a uma lógica central, em que os Timores são coadjuvantes em seus próprios processos e estudos, constitui-se por meio de ideias coletivas entre pesquisadores, timorenses e brasileiros.

Dados dos Autores:
Atilio Vivian Neto – Brasileiro, jurista e Sociólogo
Zenilton Zeneves – Timorense, Pesquisador e Estudante de Direito
Rogério Sávio Ma’averu – Timorense, Pesquisador.
Cipriano Sarmento – Timorense, Pesquisador e Estudante de Direito.


Pintura: Alfe RM

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